Dez minutos para viver
QUARTA-FEIRA, 4 DE AGOSTO DE 2010
* Roberto Kusiak
Temporal anunciado no serviço de meteorologia. Mais uma noite chuvosa e sonolenta de serviço. Talvez um acidente para atender e mais nada. Era sempre assim. Estávamos um pouco desanimados. Gostávamos de noites agitadas, de correria, de perseguição à vagabundos, de prisões. Gostávamos de ser polícia, eu e meu parceiro. Dois veteranos, quase vinte anos de serviço. Corações já endurecidos ao longo dos anos. Não sentíamos pena de vagabundo, muito pelo contrário, sentíamos sim, uma vontade de mandá-los para o outro lado, de limpar a cidade. Não importava quanto sangue o vagabundo derramava. Como disse, nossos corações estavam muito bem guarnecidos por uma crosta intransponível de quase vinte anos de crimes, de sangue, de choros, gritos, tiros.
Paramos a viatura embaixo de um galpão da RFFSA para tomarmos um gole de café que eu sempre tinha comigo na viatura. Aproveitamos para desembaçar os vidros e esticar as pernas. Pelo rádio ouvimos a central despachar outra viatura para atender a um acidente na rodovia, grave, segundo o rádio-operador.
Não foi preciso palavras, apenas nos olhamos. Estávamos há mais de seis meses trabalhando juntos. Sabíamos, apenas pela troca de olhares, o que precisava ser feito. Jogamos os copos de café fora e saímos em direção ao acidente. A chuva aumentou. Vinha acompanhada de um vento muito forte que fazia a viatura balançar. Chegamos ao local do acidente antes da outra viatura, onde estavam dois colegas recém formados, inexperientes ainda. Também fui novato, ninguém nasce sabendo. Também colei as placas em momentos de tensão. Os anos encarregaram-se de me dar a experiência que hoje tenho.
O veículo havia saído da pista. Chocou-se contra um pinheiro no acostamento. O motorista estava preso nas ferragens, ainda vivo. Enquanto meu parceiro verificava as condições dos ocupantes do veículo, instantaneamente eu sinalizava a rodovia a fim de evitar outro acidente. Era sempre assim que fazíamos. Éramos mais que uma dupla, éramos uma equipe, nos desdobrávamos nas funções, automaticamente.
Quando a outra viatura chegou, orientei os colegas para sinalizarem melhor a rodovia. Nesse instante, meu parceiro que havia descido o barranco, gritou para um dos novatos.
- Desce aqui e me dá essa capa de chuva.
- Mas eu vou me molhar.
- Anda logo caralho. Tem um bebê aqui, porra. Desce.
- Mas eu vou me molhar.
- Anda logo caralho. Tem um bebê aqui, porra. Desce.
Quando vi o novato chegando perto da viatura com o bebê no colo corri, abri a porta de trás para que ele colocasse o inocente no banco, onde verifiquei seus sinais vitais. Estava congelado, muito pálido. Apresentava sinais de hipotermia. Não pensamos duas vezes. Meu parceiro voltou para o veículo batido enquanto eu corria para o hospital com o bebê. Não havia tempo para esperar a chegada das ambulâncias. Acelerei aquela lata velha e saí cortando o temporal.
A pista estava encharcada, mal conseguia manter a viatura estável. Precisava correr e não podia. Olhava pelo retrovisor o bebê no banco de trás, imóvel. A chuva e o vento faziam a viatura balançar. O limpador do pára brisa estava ligado no máximo, mesmo assim não dava conta de mantê-lo livre da chuva. Uma agonia foi tomando conta de mim. Um aperto no peito. Uma vida estava em minhas mãos, a vida de um inocente. A imagem de minha filha apareceu como uma projeção na noite. Eu precisava correr.
Foram os oito quilômetros mais longos de minha vida. Do local do acidente, até o hospital. Pelo rádio da viatura pedi para que deixassem o hospital em alerta para quando eu chegasse. No meio do caminho cruzei com as ambulâncias do resgate. Pensei em interceptá-las, mas não dava tempo. Melhor continuar. Tentava em vão acelerar mais a viatura. A chuva e o vento aumentavam. Eu não podia por em risco aquela criatura. Minha agonia foi aumentando. O risco de uma aquaplanagem era enorme. Andava no limite. Um olho na pista, outro no bebê, imóvel no banco de trás.
Cheguei ao hospital e, para minha surpresa, não havia nenhuma equipe à minha espera. Caralho. Peguei o bebê em meus braços e abri a chutes a porta da emergência. Como sabia onde ficava a sala do atendimento, fui direto para lá. No caminho já ordenei que trouxessem cobertores. Sim, ordenei, não tinha tempo para pedir favor. Prontamente as enfermeiras atenderam. Coloquei o bebê sobre a maca e dei espaço para as enfermeiras e o médico trabalharem. Ele abriu os olhos, chorou. Procurou naquele ambiente um rosto familiar. Foi quando aquele pequeno olhar encontrou o meu. Ele estava vivo, sim, vivo. Segurei sua pequena mão por um instante. Senti aqueles dedos frágeis e gelados apertarem minha mão. Ele parou de chorar e me olhava, no fundo dos olhos. Tinha apenas seis meses de vida.
Precisava voltar ao local do acidente para ajudar os colegas. Avisei as enfermeiras que voltaria depois e que havia mais vítimas. Embarquei na viatura e saí rasgando a noite. Apesar do temporal no lado de fora. Baixei o vidro da viatura e deixei a chuva que batia em meu rosto, lavar os pedaços daquela parede intransponível que, até então, envolvia meu coração e que saía em forma de lágrimas pelos meus olhos.
Mais tarde, depois de todos os procedimentos, voltamos ao hospital. Dudu, o bebê, dormia, aquecido, como um anjo. O médico nos informou que ele não havia sofrido qualquer tipo de lesão. Mas, se não tivéssemos levado ele ao hospital naquele momento, teria morrido em menos de dez minutos por hipotermia.
---- Fim ----
Autor: Roberto Kusiak, soldado da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Sul, trabalhando atualmente no 5º BPM, na cidade de Montenegro, próximo à capital. Nascido em 1970. Desde 1990 convive com os horrores do mundo cão, com o lado sujo que não sai na imprensa. O papel e a caneta tornaram-se, para ele, um meio de estravazar o estresse, imperceptível aos meros espectadores. Blog: http://www.roberyk.blogspot.com/
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